Mestre Gil Maia

Valter Hugo Mãe, 2022

Acompanhar o trabalho de Gil Maia é medir como a abstração pode ser um obstinado rigor, um modo de encontrar a estrutura emotiva com que se vê o lugar, nomeadamente a casa ou a paisagem. Sinto sempre que as obras de Gil Maia auscultam as volumetrias essenciais, são uma espécie de retrato de aura dos espaços porque se torna insuportável conceber que não sejam intensos de energia e se assumam como verdadeiras entidades. Olhar para os seus estudos, e há sempre a hipótese de não haver conclusão possível, enquanto nos assalta a ideia de querer o rigor, é depararmo-nos com a mais orgânica forma de pensar a casa e a paisagem. Por mais geométrico e feito de cálculo, o trabalho de Gil Maia é o império da composição ao jeito do que pode acontecer à planta. A obra, de verdade orgânica, está na tela como um pedaço de natureza livre que se autodetermina na perfeição mas em infinitos sentidos. O que vemos é sempre perfeito mas aberto a todas as oportunidades, exactamente como o galho se ramifica e floresce, como a floresta se compõe, do mais ínfimo ao mais extremo, na sua deriva nada é exactamente um erro. Tudo concorre para o esplendor.

Abriu na Galeria Sete, em Coimbra, a exposição “Quase Lugar” o artista explora, mais uma vez, a ideia do lugar da infância, agora observando o exterior da casa e o seu debate com a paisagem. Por diferença, usa o papel como suporte e o papel é esse material de melindres, onde tudo se regista, onde o uso do óleo não permite recuar.

O papel torna-se o suporte da obra e ostenta todo o vício processual, o que cria a oportunidade de a imagem principal ser secundarizada por uma espécie de acidente de si mesma, algo como um registo de oficina que, na esteira da mais sincera germinação completa delicadamente o que se vê. O acidente, todo o erro ou simples acaso são naturalizados na obra, que ostenta a mesma firmeza anterior que nos propõe a busca brava pelo rigor mas se permite, mais do que nunca, revelar seu percurso, sua pégada, o estilhaço do gesto fundamental. Nesse estilhaço, curiosamente, vejo uma poética miúda delicada e de profunda beleza. Os quadros de Gil Maia em Coimbra são mais íntimos do que nunca.

O papel cria intimidade. A tentação caligráfica, aquela sujeição do artista aos seus melindres, de que falava acima, concorrem para a preciosa ideia de que a obra é uma anotação mais sincera, como fazemos no caderno que abeiramos mais do corpo e usamos para uma qualquer meditação. Em todo o tempo, o que Gil Maia faz é meditação. O seu espectro contemplativo, e até reclusivo, com tantos dos seus trabalhos a oferecerem certa fundura onde nos pressentimos num essencial abandono, é proposta sobretudo de espaço de autoconsciência, encontro consigo mesmo, reflexão até austera que nos convida a imaginar as principais perguntas e as principais respostas. A intimidade da obra de Gil Maia, que de facto se adensa nesta série, é ofício dessa espiritualidade artística de onde se pode inventar outro sagrado, outra revelação.

Todos nós lidamos com formas ideais ao jeito do que Kant tanto explicitou e defendeu. A arte, mais ainda, ronda incansável a hipótese, enlouquecendo com frequência o artista que não desiste de vislumbrar esse objecto proibido que é o da dimensão pura.

Essa demanda enlouquecedora também pode ser a que define o mestre, se o artista souber manter-se tão pertinente quanto possível. A impiedosa busca que Gil Maia faz, não me restam dúvidas, é um exercício de angústia que apenas pode suceder a quem aceitou entregar-se à dificuldade necessária. Mas é também a glória de quem tem engenho para o fazer, ascendendo magnificamente acima da maioria da pintura contemporânea, estabelecendo-se como um caso de verdadeira mestria na sua geração.

Para ver na Galeria Sete, nesse cidade algo sebastiânica que é Coimbra. É de mim, ou estamos todos à espera que algo em muito grande ali aconteça? Como um gigante que acreditamos poder um dia levantar-se. Até quando?


Construir a
Casa e a Alma

Valter Hugo Mãe, 2013

Ando há muito a seguir o trabalho de Gil Maia porque me suscita um fascínio muito particular. O modo como expõe as estruturas de peças imaginárias, entre o mobiliário e o edifício, lembra-me a escama de peixe. O descarnado do peixe que, sobrando esqueleto, adquire uma beleza muito própria por nos revelar como se organiza essencialmente um determinado corpo.

Pois, creio que o trabalho do Gil Maia tem isso, a revelação da organização essencial de um corpo que é visto num espaço peculiar. O corpo, indefinindo-se sempre, por ser em partes de uma coisa e de outra, surge como num caminho intermédio entre a ideia de construção e o seu propósito útil ou decorativo. Há sempre uma expectativa de dignificação do objeto em construção, porque o lugar onde o vemos nunca é apenas o da oficina, antes vemos o do compartimento de referência de certo luxo, com elementos de uma portugalidade preciosa onde parece encontrar o seu destino.

Gosto muito do intrincado geométrico destes quadros. Um certo Escher pode ser chamado à colação. As peças, por vezes, vogam suspensas e são sobretudo a sua alusão ideal. Uma quase espiritualidade do objecto é o que se mostra. Por isso, podemos duvidar das formas, daquilo que sugerem, resolvendo o que vemos como um quebra-cabeças que talvez não tenho solução. O quebra-cabeças é o objeto, suficiente e acabado como tal, existindo para problematizar aquilo com que convivemos e o modo como ocupamos o espaço.

A nova coleção do Gil Maia joga com as flores, o que é novo no seu trabalho e casa excecionalmente com a opção de explorar a técnica do óleo. A textura acentuada do óleo, por oposição à limpeza do acrílico, traz relevo às flores, criando um efeito quase de colagem, elevando da tela determinados pormenores como se estivessem realmente apostos à tela e não fossem naturalmente pertencentes à mesma. A questão da colagem é interessante na obra do pintor porque as suas imagens são muitas vezes criadas por sobreposição de planos, num jogo gráfico que parece confundir, muitas vezes, o debaixo e o de cima.

Há mesmo a ironização do tópico das flores através da sugestão de arranjo com a jarra de azulejo na parede. E ironiza o sentido decorativo do azulejo português, o modo como ele se sustenta como arte e como parece tornar desnecessária a presença de outra arte qualquer.

Em certo sentido, os quadros do Gil Maia parecem carregar a oficina e o palácio, como se juntassem, dignificando, o trabalhador e o aristocrata, permitindo que cada coisa adquira a plenitude de todas as suas dimensões. A vulnerabilidade e arte natural das flores completa a perenidade e arte representativa dos azulejos. Da mesma forma, o efémero do trabalho fica lembrado para sempre no eterno da tela, que vai ser para sempre uma arte do fazer, sublinhando a beleza das formas a partir do elogio direto do engenho e da manualidade.

As telas do Gil Maia sempre têm esta ideia, a de colocar nas paredes a problemática do engenho.

Nestas construções no mosteiro mais s e adensam as ideias que sempre guardei sobre a sua arte. O que diz respeito à manualidade e ao cálculo, o que leva a espiritualidade e o palaciano a juntar-se com a força mais humana do indivíduo que faz, o trabalhador. Os quadro dos Gil Maia são súmulas do trabalhador, o que faz e arquitecta, o que se deleita, o que aspira a algo melhor. Encontro nisto um compromisso ético. Uma importância clara de cada coisa vista por uma espécie de conquista. A arte como paulatina. A arte como estratégia. A arte como uma certa vitória. Uma verdadeira conquista.

Abre o tempo de romaria à Galeria Sete, e depois à Galeria Nuno Sacramento. A consistente obra do Gil Maia é rara. Não têm existido tantas oportunidades quantas gostaríamos para a sua contemplação. Talvez por reclusões típicas dos mosteiros, talvez pela ponderação séria do caminho. Este ano, sim, existe a possibilidade desta estreia e considero-a muito imperdível. Coimbra e Ílhavo, pois.


Pôr em Cena

Hugo Dinis, 2010

A exposição Constructiones in Palatio de Gil Maia, apresenta uma nova série de pinturas que dão continuidade às pesquisas formais e conceptuais que o artista tem desenvolvido. Desta feita, as pinturas focam-se em torno da história cultural portuguesa e questionam como a identidade individual e colectiva pode ser edificada em estranhas formas geométricas encenadas num palco teatral.
As pinturas presentes na exposição podem ser descritas formalmente em três elementos fundamentais: no primeiro plano uma construção tridimensional ocupa o centro da composição, estas sólidas formas geométricas são destabilizadas por manchas informes que as desequilibram; por outro lado, o plano de fundo das pinturas é neutro, predominando as não- cores, preto e cinzento, que promovem um plano infinito; por fim, o chão, neste caso pode-se dizer o palco, é composto por azulejos de tradição portuguesa e de influência árabe. A simplicidade desta composição promove a sua complexidade conceptual, porque a encenação da identidade histórica poderá reavivar a identidade íntima e pessoal de cada indivíduo, sem com isso alcançar a identidade nacional. É, exactamente, neste limbo muito ténue que a obra de Gil Maia se situa. As referências históricas servirão para ligar as pinturas ao seu contexto social, geográfico, político e, sobretudo, cultural tentando, deste modo, criar um terreno estável e familiar onde a encenação da figura do primeiro plano pode ocorrer. O despojamento do espaço envolvente e as cores neutras preparam o espaço ideal – uma clareira – que possibilitará a abertura da obra para o seu devir. Segundo Martin Heidegger, na ” Origem da obra de arte” (1935/36), o combate entre o mundo e a terra que se dá num templo abre uma fenda onde a obra pode ser-obra-de-arte. Neste confronto a verdade acontece porque está despojada de significados e sentidos. O templo é o lugar por excelência deste acontecimento, porque como espaço vazio – algo que está entre a terra e o céu, mas que não pertence a nenhum deles – permite todas as possibilidades de confronto entre o conhecido e o desconhecido ou, extrapolando o autor, entre o novo e o antigo, entre o eu e o outro.

Nas pinturas de Gil Maia a encenação num espaço de clausura tem como propósito o alcance da verdade sobre a obra e sobre quem se confronta com ela. A criação de espaços-figuras geométricos que se confinam no espaço da tela potencializa a edificação de um lugar ausente e vazio. Neste espaço o combate entre mundo e terra possibilitam a abertura da obra. Contudo, é no confronto último com o seu espectador que a pintura se complementa. A história pessoal de cada indivíduo, as suas expectativas, desejos e anseios ganham um novo espaço para ser encenados. Este palco é o lugar por excelência onde a narrativa pode ser construída por cada qual que se disponha a fazê-lo. Neste sentido, as pinturas de Gil Maia são espaços de possibilidades, de abertura, não para o mundo exterior que nos rodeia, mas sim para o nosso interior em direcção a uma verdadeira honestidade e sinceridade connosco próprios.


As Construções
do Imaginário

Miguel Matos, 2010

É do cruzamento de elementos aparentemente díspares que se faz nascer novos universos pictóricos. Se tomarmos esta afirmação como válida, Gil Maia é um dos nomes recente da arte portuguesa que a personifica. Pode parecer paradoxal, mas a junção de elementos do minimalismo com o abstraccionismo e o construtivismo em cenários góticos ou barrocos é a chave do mistério encerrado nas telas deste artista. cada pintura de Gil Maia é uma encenação de espaços que servem de habitáculos para estruturas insólitas e aparentemente sem sentido.

Na exposição que realizou na Galeria Sete Childhood Spaces, Gil Maia encetou um estilo mais depurado na sua pintura. Até então praticava uma pintura de miscigenação de formas, evocativa de alguma tradição da escola francesa, aludindo, ainda que subtilmente ao universo expressionista de Júlio Pomar. Um lirismo onírico permeava as suas imagens até que em 2008, as suas formas agudizaram-se e ganharam contornos mais geométricos. A alusão à colagem e à sobreposição de formas afirmou-se de maneira diversa e a pintura tornou-se mais contundente, no sentido de ganhar dinamismo e projecção a partir da tela para o observador.

De um período mais relacionado com o expressionismo abstracto, com alusões mais ou menos explícitas ao universo de Francis Bacon, Gil Maia derivou as suas imagens para uma maior depuração e limpeza de elementos. Dentro das suas telas foram crescendo estruturas arquitectónicas e os espaços onde estas habitam contribuem para uma maior tridimensionalidade. A noção de espaço como palco, como cubículo encenado, conserva a influência de Bacon, mas aqui o que está no centro não é nunca a figura humana e sim construções abstractas, elementos de constituição de objectos que não reconhecemos. Se a estes elementos juntarmos as capacidades de multiplicação geométrica, de duplicação de formas e desdobramento de superfícies (que fazem lembrar algumas obras de José Pedro Croft), temos uma mistura aparentemente paradoxal de elementos e influências que fazem desta uma série de trabalhos muito peculiar e muito bem conseguida.

Na exposição Constructiones in Palatio, na Galeria Pedro Serrenho, Gil Maia dá-nos conta de que a sua obra está em constante evolução e mutação. O perfeccionismo do pintor leva-o a exibir uma técnica irrepreensível. A superfície da tinta acrílica, depois de finalizada a obra, parece intocada por mão humana, o que parece paradoxal, levando em conta todas as camadas de elementos e geometrias. Seria de esperar que estas “saltassem”da tela. Ou que, de alguma forma, parecessem emergir fisicamente. Mas tal não é o caso quase deixando o observador a indagar se o que tem à sua frente não será um desenho digital, uma obra de design gráfico. Cedo se percebe de que é mesmo pintura, sobre tela ou sobre papel, em maiores ou menores dimensões. Aliás “borrando” as superfícies geométricas e os fundos, a fisicalidade da tinta é testemunhada por manchas esborratadas que adicionam complexidade à imagem. O efeito de enigma mantém-se sempre como se as pinturas de Gil Maia segredassem qualquer coisa em tom tão baixo que nunca conseguiremos entender na totalidade. Enquanto tentamos entender o que se esconde por entre as formas, estas parecem viver. Aparentam girar lentamente, flutuar, pairar, respirar. Quase se sente o bater de um coração. Gil Maia trata as estruturas centrais destas telas como se fossem personagens. É como se os fundos fossem habitáculos com referências estranhamente familiares, com motivos talvez pertencentes a azulejos que podemos facilmente encontrar em casas portuguesas antigas. Desde o estilo barroco a decorações de azulejos arabizantes, há uma constante tentativa de prender o abstracto a algo que ligue o espectador por laços de memória. São paisagens interiores em tensão, frames de um movimento instável.

O momento de transformação interior que deu origem a esta nova série de trabalhos de Gil Maia deu-se aquando da visita do artista ao Mosteiro de Alcobaça. Aí, Gil observou a arquitectura gótica, o silêncio sepulcral do espaço e a luz que entrava em feixes de vida. Na cozinha observou as decorações em azulejos. «Este encontro com a história tornou-se especial», conta o pintor. «Especial porque o meu trabalho artístico, ou seja, a pintura, passou a absorver, desde então, determinados elementos característicos do nosso património cultural, com especial relevo para a azulejaria portuguesa que ornamenta, se entrelaça e joga brilhantemente com a rudeza pétrea das arquitecturas dos nosso mosteiros, conventos, palácios… O espaço palco de cariz mais doméstico e intimista que vinha explorando até então deu lugar a espaços-palco mais abrangente, ou seja, os espaços que outrora foram palco da nossa história e que hoje são espaços de todos nós, ou pelos menos de todos aqueles que os procuram e visitam». As pinturas de Constructiones in Palatio são uma tentativa, também, de valorização da memória cultural e do património artístico português através de estruturas de pedra e elementos decorativos reconhecíveis que ganham novas perspectivas nestas telas e servem de panos de fundo para a cena que se passa ao centro, tendo como actor a figura abstracta, geométrica e absurdamente arquitectónica. Com isto Gil Maia passou de uma pintura íntima, expressivamente complexa e por vezes onírica para um registo de encenação poética mais limpa, clara e despojada. Gil Maia afirma: «nos espaços que crio (espaços-palco) confluem os estilhaços da memória dos espaços reais que outrora visitei, mais os estilhaços ainda quentes do meu presente, os quais permitem imaginar a ossatura de possíveis objectos, mobiliários, resquícios de objectos domésticos ou mesmo não objectos integrados num ambiente palaciano. Os espaços dos palácios que visitamos são de todos nós. Estes, criados a partir daqueles são meus..mas devolvo-os ao público».