Quase Lugar
há nestes campos uma incalável voz que me chegapassos que ecoam da terra batida
outras árvores, mesmas árvores e ventos novos
pedras que se movem
ergo-me a uns metros do chão
procuro a bruma azul no topo das casas, a noite dentro do sol
as crianças que já não estão, os seus disfarces
procuro uma certa infância, o meu grito
estou aqui, aqui entre os muros baixos
guardo-lhes nas frinchas os desenhos das amizades deixadas sem adeus
e sem nada temer dispo-me de tudo o que vem depois, apago o futuro
este lugar alberga em si manhãs domésticas, profícuas à imaginação
tardes fugitivas e noites curtas
postais vindos de longe, sem remetente
estar aqui é sentir a força do íman
é querer ver as curvas de grafite
a subtileza da textura da água que não me atrevo a tocar
é arrancar o fóssil
estar aqui é envernizar a perda
é afagar a maciez da seara, folhear os afectos
é sorrir perante o espanto
José Tolentino Mendonça
Quando falamos de lugar não falamos apenas de um espaço físico, mas também e sobretudo de um espaço relacional. São as relações, as emoções e as vivências que nos permitem atribuir o estatuto de lugar a um espaço físico, pois são estas que lhe acrescentam um significado. Criam-se laços, hábitos e afectividades. Criam-se memórias.
Quase lugar é uma viagem à infância, ao lugar da infância. Se por um lado, a memória me dá a possibilidade de mergulhar nessa vivência, trazendo consigo emoções e imagens, por outro, o espaço físico ainda existente permite-me tocar, hoje, de forma tangível parte dessa infância. Contudo esse espaço actual não me permite experienciar as mesmas relações e emoções intrínsecas àquela vivência. Essas, só as consigo aceder através de espelhos baços recorrendo à memória, desaguando inevitavelmente no imaginário. Viajar ao lugar da infância é não ir ao lugar na sua plenitude, é apenas chegar perto, é chegar quase. Ir ali é criar outra memória, uma sub-memória, para poder sentir mais de perto o que já não está, quem já não está, os afectos que porventura se perderam. Para além deste facto, que por si só justifica o quase lugar, há o facto de o espaço físico não ser, hoje, exactamente o mesmo. O cenário também mudou, sendo cúmplice no esvaimento da essência daquele lugar, que deixou de ser para ser quase.
A Pintura permite-me auscultar um pouco mais fundo a constatação da perda. Da perda de uma infância que, desconhecendo um futuro totalmente distinto, acordava sempre para o espanto, para a liberdade e para a imaginação. Permite-me tocar, saindo à rua, no coração do mais importante e estruturante do meu ser, naquilo que fui, que sou e que serei.
Em nota de conclusão, a infância de hoje mereceria uma reflexão muito profunda, pois, no meu entender, é parca em vazio, em silêncio, em espaço e consequentemente em liberdade e espaço para a imaginação, sendo estas características primordiais no desenvolvimento de seres humanos menos ocupados com trivialidades e mais com essencialidades.